quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011




O xeque que compra de tudo
Maior colecionador do mundo, Saud al-Thani
quer fazer do Catar a Florença muçulmana


Meses atrás, uma feira de arte na cidade holandesa de Maastricht recebeu a visita de uma figura em trajes árabes. Por onde o xeque Saud al-Thani passava, causava frisson entre os marchands. Ele é raramente visto nesse circuito – mas todos sabiam bem de quem se tratava. Al-Thani é o maior e mais agressivo colecionador do planeta, de acordo com a revista americana ARTnews, que acaba de divulgar seu ranking anual do gênero. Integrante da família real do Catar, emirado com 770.000 habitantes e a terceira maior reserva de petróleo do mundo, ele gasta algo entre 100 e 300 milhões de dólares por ano em obras de arte, antiguidades e afins. A magnitude de seus investimentos só é comparável à de colecionadores célebres do passado, como o americano Solomon R. Guggenheim, fundador do museu nova-iorquino homônimo. Nos últimos anos, Al-Thani vem provocando abalos sísmicos em vários nichos. Somente no primeiro semestre deste ano, ele desembolsou 28 milhões de dólares por 350 peças de arte islâmica. O xeque também tem fascínio por relíquias egípcias – e costuma impressionar os ouvintes com seus conhecimentos sobre o faraó Akhenaton, da 18ª Dinastia, com quem teria uma curiosa semelhança física. Mas seus interesses vão muito além: ele coleciona fotografias, pinturas dos velhos mestres, livros, mobília francesa do século XVIII, esculturas romanas, pedras preciosas, fósseis, vestuário de época, câmeras, bicicletas, automóveis antigos... Nutre ainda outra paixão: os bichos. Numa propriedade no deserto, cria espécies raras como a ararinha-azul, uma ave brasileira em extinção.
Com 39 anos, casado e pai de três filhos, o xeque estudou em colégios militares e é autodidata em história da arte. Apesar disso, os marchands não se cansam de elogiar sua intuição – por razões óbvias. "Não me contento com nada menos que obras-primas", declarou ele recentemente à publicação inglesa The Art Newspaper. Nos leilões de casas como a Christie's e a Sotheby's, seus lances levam as cotações às alturas. Em 2000, ele não hesitou em desembolsar 9 milhões de dólares por um livro raro, Pássaros da América, do naturalista John James Audubon (1785-1851). Às vezes, adquire acervos inteiros de uma tacada. Foi o caso da Coleção Bokelberg, com fotografias datadas de 1844 a 1939, que saiu por 15 milhões de dólares. Na contramão do mercado, o xeque não tem interesse por quadros impressionistas e modernistas. "Prefiro objetos a telas, pois meu prazer é sentir cada peça nas mãos", diz ele. Embora não se importe em pagar caro, há rumores de que o xeque resolveu boicotar certos leiloeiros parisienses. Aproveitando-se de sua empolgação, eles teriam se valido de lances falsos para inflacionar seus preços. Além de comprador voraz, Al-Thani é mecenas. Um exemplo: ele contratou o artista plástico inglês David Hockney para criar a piscina de sua propriedade no deserto.
É nesse local paradisíaco, com jardins artificiais e um complexo de estufas, que o xeque mantém seu zoológico. Ele financia projetos de preservação, mas, paradoxalmente, não abre mão de ter espécies em extinção em cativeiro. Trata-se de uma paixão que quase lhe custou a vida. Al-Thani foi baleado enquanto participava de um safári na Somália para observar um tipo de antílope ameaçado. Recuperado, ele deu um jeito de levar nove filhotes para o Catar. Além desses bichos, o xeque gosta de veados, cervos e felinos, mas tem fixação mesmo é por aves. Possui exemplares de várias espécies brasileiras ameaçadas, incluindo 42 ararinhas-azuis – 80% de toda a população ainda existente desses pássaros. Como a ararinha-azul foi extinta na natureza e só há dez indivíduos em posse do país, seu futuro está praticamente nas mãos do xeque.
Primo do emir do Catar, que subiu ao poder em 1995, depois de derrubar seu pai num golpe sangrento, Al-Thani cuida da política cultural do emirado. Seu hobby se confunde com um projeto de Estado: a criação de cinco museus para sua coleção. A pretensão é transformar Doha, a capital do país, numa Florença do mundo muçulmano. "Queremos ter uma cidade culta", diz Al-Thani. Para conceber o primeiro desses museus, dedicado à arte islâmica, o xeque contratou o arquiteto sino-americano I.M. Pei, o mesmo que criou a pirâmide de vidro do Museu do Louvre. O edifício, cuja construção deverá se iniciar em breve, ficará numa ilha artificial no Golfo Pérsico. Não muito distante, um conjunto sobre três pilares gigantescos abrigará a biblioteca nacional e um museu de história natural. Coube ao espanhol Santiago Calatrava desenhar um museu de fotografia descrito como "uma estrutura ultraluminosa dotada de duas asas imensas". Por fim, um palácio local será adaptado para receber seu acervo de vestes e tecidos antigos. Regido por séculos pelos rigores da lei islâmica, o Catar hoje tenta conciliar as tradições tribais com as idéias liberalizantes do emir. Muitos no país ainda se chocam, contudo, com a sensibilidade de seu parente para as artes. "Minha família acha que sou louco", diz Al-Thani. Só ela?